O fracasso histórico da Unidade Popular chilena
Quem de nós, no campo marxista, nunca ouviu falar da estratégia da revolução por etapas, feita de cima, cautelosa, sem sangue e absolutamente branda?
Esta é a história da Unidade Popular no Chile, que pela
primeira vez na América Latina elegeu pelo voto popular um presidente
“marxista”, ou como gostava de se chamar Salvador Allende, um “camarada
presidente”.
A trágica história da UP chilena e o fracasso reformista de
Allende entraram como mito para a esquerda latino-americana, o final trágico do
presidente sendo assassinado encarcerado no palácio presidencial de La Moneda
nada tem de mito, mas muito tem de farsa.
Isto é, a ideia de Allende que a revolução (como chamava a
sua eleição, o que demonstrava nada entender de eleições, muito menos de
revoluções) era um processo “maximalista”, acreditando que de reforma em
reforma se chegaria a estratégia final, através de uma conquista sonhada da
maioria eleitoral para a UP legislar no futuro, terminou de maneira trágica.
O problema reside no fato de que a esquerda (entendidos como
socialistas, comunistas, trabalhistas etc) acha radical demais criticar um
indivíduo que preferiu morrer ao exílio, e que obviamente, morreu “lutando”. Mas
a crítica e a autocrítica devem fazer parte do nosso campo, não a do heroísmo
cultuador de mártires.
Nada há de patético em morrer numa tentativa revolucionária
derrotada, mas como já diria um ditado antigo: “nem todos os caminhos levam a
Roma”. Os maoístas, em seu tempo, ironizavam chamando a “revolução chilena” de
“Longa Marcha pelas instituições da sociedade burguesa”, em ironia com o
conceito de “Longa Marcha” de Mao Tsé-Tung. O que há de patético no programa da
UP e Allende, respectivamente, diz respeito em negar o ABC do marxismo. A
“revolução chilena”, expressão utilizada por Peter Winn e outros historiadores
chilenos, é simplesmente mentirosa.
Além de populista, governista e burguesa, a visão de
revolução destes autores e da UP chilena estava à direita da própria revolução
cubana – que havia ocorrido uma década antes e da qual buscavam alguma
inspiração. Se a tática guerrilheira guevarista se mostrou derrotada na América
do Sul, a antiga Frente Popular que Allende se baseou para “implementar o
socialismo” não foi um erro esquerdista, mas puramente reformista. Vejamos o
que Peter Winn defende:
“(...)o escopo e o controle dessa planejada revolução vinda de cima foram
desafiados e transformados pela erupção de uma imprevista, porém acelerada e
profunda, ‘revolução vinda de baixo’, pela ação de trabalhadores, camponeses e
pobladores do Chile.” (pág 89)
E segue o lodo inacreditável em que afundar a classe
trabalhadora chilena:
“Essa revolução vinda de baixo com frequência coincidia com, ou complementava,
mas cada vez mais divergia da revolução legalista e modulava vinda de cima, em
um processo mais espontâneo e interativo de bases que não era facilmente
controlado vindo de cima”. (idem)
Ok, expliquemos rapidamente do que estamos tratando: Salvador
Allende foi um médico que desde a juventude militou em organizações de
esquerda, concorreu muitas vezes as eleições presidenciais, até vencê-las
definitivamente em 4 de setembro de 1970 numa coalização de esquerda chamada
Unidad Popular. Ele fazia parte da “Geração de 1938”, daqueles militantes que
não conheceram a tradição bolchevique de 1917, mas da carcomida III
Internacional sob a égide do stalinismo, de frente entre trabalhadores, classe
média e burguesia. Allende acreditava que o Chile deveria seguir “a sua via
própria ao socialismo”, isto é: la vía chilena al socialismo. Esta via, por sua
vez, já havia sido tentada em uma série de países e terminou em fracassos –
nenhum deles tão simbólico como o caso chileno, é verdade.
Sem entrar no mérito, também muito importante de Moniz
Bandeira de que Salvador Allende acabou isolado no poder por não seguir Karl
Marx de que a revolução não poderia triunfar isoladamente e em um país onde as
bases do capitalismo estavam atrasadas, o problema essencial não foi apenas
econômico, mas de que Allende tratou a classe trabalhadora chilena como
imbecil.
No que consiste esta afirmação polêmica? Uma revolução não
consiste em legalismos, a própria burguesia chegou ao poder através de
revoluções (como a Francesa de 1789) que criaram a legalidade que hoje
conhecemos como universal através da pancadaria e da violência revolucionária.
A UP chilena, com todo o seu amálgama de outras organizações por dentro,
embarcou na euforia legalista da “democracia mais sólida dos países latinos”
que em um passe de mágica se tornaria no “terrorismo de estado mais sólido dos
países latinos”. Pífio.
Com medo de assustar aquilo que denominava como burguesia
progressista e também a burguesia reacionária, diversos “dribles” legais foram
dados que continham: chantagem política, apoio da maioria do congresso,
alianças esporádicas, giros parlamentares etc. Allende chegou a ser tratado
como o grande xadrezista da política chilena, muito semelhante a como a
esquerda latina hoje denomina Lula no Brasil.
Não significa dizer que o governo de Salvador Allende fosse
de todo ruim. As ocupações de fábricas incentivadas pelo governo, como a de
Yarur (a mais marcante de todas), apenas demonstravam a contradição em que o
governo estava por andar pelas duas vidas, isto é, administrando o capital em
busca do socialismo. Os bens básicos de consumo, como os lençóis para os
camponeses pobres, negados durante séculos, agora chegavam aos lares mais
desabastecidos por uma sensibilidade do governo.
Um outro péssimo fator que pesou contra o governo de Allende
foi a questão econômica – que como sabemos, foi o que derrubou a UP do poder.
Sergio Bitar, que pertencia à esquerda cristã uniu-se a UP para ser o
conselheiro econômico da Unidade Popular. Detalhe: no governo, nem Allende e
nem ninguém eram economistas. Que estratégia de socialismo é esta? Para
enfrentar o capitalismo, não se precisa de economistas, já que o Capital de
Marx sempre tratou de uma “Crítica da Economia”; mas é extremamente necessário
entender que estrutura é esta com que estamos lidando.
Assim, Bitar (que pertencia ao grupo econômico dos
estruturalistas, isto é, aqueles que entendiam a inflação como um problema da
concentração de renda do capital, contrário aos monetaristas, que viam na
inflação um problema de gastos governistas) ficou encarregado de lidar com os
boicotes estrangeiros que o governo Upista estava sofrendo e com a inflação
galopante que vinha ocorrendo no Chile – principalmente em 1972.
Os cordões industriais:
A relação entre aproximação e tentativa de se desvencilhar
do que ocorrera na União Soviética foi mais motivo de fracasso do que de êxito
por parte da UP chilena, porque se alcançou algumas conquistas semelhantes,
como a nacionalização de diversas empresas estrangeiras que exploravam
absurdamente o operariado chileno, não conseguiu manter essas conquistas nem
pela metade do tempo que ocorrera na URSS.
Neste processo, os cordões industriais foram a parte mais
radicalizada do processo chileno, entendido erroneamente como “a revolução
vinda de baixo”. Ora, um processo revolucionário que vem “de cima” sequer pode
ser entendido como revolucionário, mas no melhor dos casos, como reacionário.
Sendo linha de frente das organizações de base, o principal
exemplar dos cordões foi o O’Higgins, que era a então empresa privada Yarur, e
foi deste Cordón que saiu a principal resistência as sabotagens da burguesia
chilena e estado-unidense ao governo Allende. O problema é que toda a luta foi
transformada em campanha eleitoral partidária, como estamos acostumados a ver
aqui no Brasil com os sindicatos e organizações pelegas. E evidentemente, o
resultado disto foi trágico.
Em não apostar na luta armada dos cordões industriais, mas na
maioria parlamentar, em evitar lutar para concorrer a cadeiras eleitorais,
Allende sepultou completamente as escassas chances que possuía de concretizar o
seu utópico caminho ao socialismo.
Mas podemos nos perguntar, por que utópico? Não teriam Marx
e Engels instaurado a era do socialismo científico e superado a época dos
utopistas? A questão reside na invalidade histórica da via pacífica ao
socialismo, caminho este que sempre levou a desconfiança de muitos militantes
nas frações mais racionais da UP chilena. Lembremos das palavras de Lenin em o
Estado e a Revolução: “A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário
não é possível sem uma revolução violenta. A abolição do Estado proletário,
isto é, a abolição de todo e qualquer Estado, só é possível pelo definhamento”.
Ou seja, era um direito de Allende e da UP de rever as bases fundamentais de
Lenin, Marx, Engels e por sua vez do socialismo científico; mas foi um “direito”
que custou caro ao direito do proletariado chileno de conquistar o poder, coisa
que vagamente possuía com o legalismo upista.
Companheiro Presidente x O proletariado como classe
dominante
Duas posições distintas e ao mesmo tempo duas posições
possíveis dentro do contexto setentista do Chile. Voltando as ideias concretas
e revolucionárias de Lenin em O Estado e a Revolução, onde a organização da
violência exercida por uma classe contra a outra é definida pelo Estado; na
experiência chilena, por sua vez, tivemos o “companheiro Presidente” e a
utópica ilusão de que através de uma maioria parlamentar poderia se chegar a “votar
o caminho ao socialismo”.
A tão mau falada pela esquerda Tcheca, polícia secreta
soviética fundada em 1917 que possuía a tarefa de esmagar a sabotagem e a
contrarrevolução na URSS, talvez fosse muito útil a UP chilena. Infelizmente eles
não possuíam estratégia, não entendiam muito de economia e não tinham saídas
militares para a sua aventura governista. A burguesia chilena não usou-se de
artifícios democráticos para fundar a DINA, Dirección de Inteligencia Nacional,
criada em 1974 pelo governo dos Estados Unidos e pelos fascistas chilenos da
Patria y Libertad. A DINA possuía amplos poderes para perseguir e matar
socialistas, fossem favoráveis ou não a uma insurreição violenta ou democrática,
guevarista ou allendista. Também foi a responsável por matar o General Carlos Prats
na cidade de Buenos Aires, aliado de Allende que possuía a missão de manter “o
exército distante de posições políticas”. A famosa CNI (Central Nacional de
Informaciones) substituiria a DINA em 1977.
Ainda em 1973, antes do golpe militar que assassinaria
Allende e centenas de seus apoiadores de imediato, o camarada presidente
declarou que deveria se chamar Augusto Pinochet porque ele “era um dos nossos”
e “era um grande soldado” que “manteria o exército afastado da política”.
Pinochet era o indicado de Prats para assumir a sua posição após a sua renúncia.
Já distante dos dias gloriosos (e também enganosos!) do
companheiro presidente, que assumia ao mesmo tempo em que rejeitava o fracasso
reformista “mais fraco” de um governo anterior (Eduardo Frei), as últimas 24
horas de Allende no poder foram um resumo trágico de todos os seus equívocos
legalistas. Os socialistas-cristãos, do qual Allende possuía apoio e que endossaram
a sua candidatura também não foram o suficiente para barrar a contrarrevolução.
O principal sindicato do país, a CUT (Central Unitaria de Trabajadores), cujo
nome para os brasileiros deve trazer pesadelos, também não estava preparado. A questão
é: ninguém estava, pois não havia uma segunda opção desta que deveria ser a
primeira opção. O legalismo corroera o governo allendista em um dos momentos
mais sensíveis da Guerra Fria, onde os Estados Unidos e seus mecanismos de
inteligência não estavam para brincadeira.
O legado de Allende é o de esquecê-lo.
Diferentemente do
que faz a nossa esquerda, Salvador Allende precisa ser esquecido. Não que este
não seja um “companheiro”, mas seu legado é funesto. É louvável que diferentes
de Lula, dos Kirchner e de outros “companheiros presidentes” latino-americanos,
Allende tenha tentado ir tão longe? Sim, mas diferentemente do que afirma a
Resistência, corrente lulista do PSOL, quando afirma que “a 50 anos do triunfo
da Unidade Popular, revisitar o pensamento de Salvador Allende torna-se mais necessário
do que nunca”, sabemos que criticar e negar o seu pensamento é o que torna-se
mais necessário do que nunca. Allende precisa ser esquecido no sentido que
precisa ser lembrado: como um derrotado que viu no seu fracasso um êxito.
Dito isto, precisamos entender que o socialismo jamais deve ser um palanque para aspirações individuais, é uma teoria viva para libertar o proletariado de sua condição histórica aprisionante e desumana. É uma saída séria para um problema sério da humanidade. É um caminho que traçará inevitavelmente o nome de mártires, mas de mártires que buscaram a libertação do proletariado, e não daqueles que buscaram a sua contenção legalista “por cima”.
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