Resposta as "omissões e dogmatismos do movimento socialista".

“Se quiser derrubar uma árvore na metade do tempo, passe o dobro do tempo amolando o machado”.




Recentemente (dia 13 de junho de 2023) o blog Consciência Proletária publicou um peculiar texto sobre as omissões do movimento socialista aos acontecimentos de particularidade humana, tais como sexo e religião. (http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2023/06/dogmatismo-e-omissoes-do-movimento.html)

Inicialmente, seu peculiar autor opõem dois autores, um historiador acadêmico, Perry Anderson, e um revolucionário que durante toda a sua vida se desviou de balas para defender a prática socialista. Até aí tudo bem. Em sua hipótese, Trotsky estaria errado em dizer que a tríade social (fome, sexo e morte/religião) seria resolvida pelo socialismo, como propõem Perry. Propondo que não somos positivistas e nem frequentamos a igreja de Auguste Comte, não buscamos resolver a morte mesmo, aliás, não há nada nela em que cientificamente ainda tenhamos que discutir com o campo religioso, isto é, sem cair no abstrato e subjetivo.

No entanto, como disse a um prisioneiro durante a revolução russa em 1917, Trotsky sempre soube que a expropriação da propriedade privada não seria a resolução de todos os problemas na Terra, pelo contrário, seria o início deles - no sentido de que somente agora haveria espaço para realmente entendê-los e resolvê-los. Pensemos, por exemplo, na questão da educação. É possível um professor brasileiro ensinar adequadamente com pensamento crítico atrelado a uma estrutura educacional completa? Óbvio que não. É preciso demolir toda a sociedade vigente, deixando intacto o que for necessário para dar o ponta-pé inicial, é isto que está em jogo. 

Para o blog, rival em pensamento ao nosso, no entanto, temas como "irracionalidade humana" e "religiosidade" ainda são abstrações impenetráveis. Como se Hegel, Feuerbach ou até mesmo Freud nada tivessem avançado neste quesito. Entendemos o que quer dizer quando afirma que "precisamos evitar os erros dos socialistas do século XX", mas contraditoriamente, não apresenta os socialistas do século XXI, pelo contrário, lida com Perry Anderson, que envelheceu no lodo do reformismo internacional virando mais um dos garotos célebres da Boitempo. Uma terrível marca que este blog parece almejar.

O socialismo do século XX:

Acerta-se ao dizer que uma questão objetiva se torna subjetiva e vice-versa. Mas nosso querido blog não aponta: Quem é a esquerda velha e qual é a nova? Em que se diferenciam-se? Na análise das subjetividades humanas? Pois neste sentido, Lenin já era acusado por Plekhanov, Bogdanov entre outros de não dar bola para estas questões. Não há nada de novo nisto. Ademais, pelo contrário, Trotsky sempre acompanhou com preocupação e atenção as análises freudianas.

Dizer que ignorar estas questões podem levar ao stalinismo, é não entender que o stalinismo é um fenômeno histórico produzido pelo próprio recuo objetivo da revolução. Como nos demonstra Wendy Goldman, talvez nenhum processo histórico no mundo tenha gastado tantas folhas, letras, palavras e conferências para debater o que era casamento, família nuclear, pensão alimentícia, maternidade, paternidade, monogamia, poligamia e até orgasmo. Outras autoras também comprovaram como o debate sexual era mais aberto na Alemanha Oriental e na Tchecoslováquia dos anos 1960 do que nos Estados Unidos ou na Alemanha Ocidental da mesma época.

Nos traz a autora: “Nas duas décadas que se passaram entre 1917 e 1936, a visão soviética oficial sobre a família passou por uma completa inversão. Depois de começar com o compromisso feroz e libertário com a liberdade individual e a extinção da família, o período terminou com uma política baseada no fortalecimento repressivo da unidade familiar. Deslocamentos parecidos aconteceram na ideologia do Estado e do direito, à medida que o Partido eliminava sistematicamente as correntes libertárias do pensamento bolchevique. (...) A troca intelectual aberta cedeu lugar à cautela temerosa, o debate honesto a uma farsa de discussão dura e débil. Ao chegar em 1936, os jornais pregavam o apoio a uma família socialista forte, a códigos legais elaborados e a um Estado poderoso”. (Wendy Goldman, Mulher, Estado e Revolução, p. 389)

Como podemos perceber, não foi o debate negando a sexualização e os temas humanos que levaram ao stalinismo, onde ele existiu e se aflorou o stalinismo nasceu. Sabemos o que o stalinismo trouxe de retrocesso a estes temas, evidentemente. Mas repetimos, uma vez mais: o seu nascedouro é o retrocesso da revolução mundial, que por sua vez, leva ao retrocesso de temas como família, direitos das mulheres, trans, etc.

O fato de Stalin, Mao, Hoxha e outros, lidar terrivelmente com temas como a religiosidade humana, provém sobretudo destes tentar produzir uma religião pessoal de si próprios ao Estado. Este tema nunca foi ignorado pelos bolcheviques, como a falsificação histórica dá a entender como um simples: vá e resolva com o fim da propriedade privada.

Falta, portanto, a "Consciência Proletária" a consciência de que a expropriação dos meios de produção trará o elemento inicial do verdadeiro debate aberto sobre tudo isto. A pseudoterapia (que mais culpa processos subjetivos que estruturais) virou febre depois da Covid-19 entre jovens e adultos, sendo muitas vezes até recomendada pelo próprio estado burguês. Esta sim, e não o socialismo para os socialistas, é tida como a resposta para tudo, a verdadeira pedra filosofal da vida. Encaixando-se no que diz o autor: "a burguesia, sua mídia, seus ideólogos"...

<<Categorias>> inacessíveis para um marxista:

Não sabemos se o blog pretende ou não ter uma visão marxista, socialista ou o que seja do mundo. Visto que há contradições em seus textos: alguns abordam lutas reais e outras se utilizam de categorias confusas como "divino", "místico" ou "pessoas espiritualizadas". Vejamos por exemplo o trecho em que parece que vamos ser apresentados a algo grandioso e nada aparece, pois o objeto é simplesmente inacessível: "...tal sensação é quase que exclusivamente sentida pela psique de pessoas espiritualizadas, sendo muito difícil a sua descrição em palavras". Ora, como podemos relatar algo que não pode ser acessível em palavras? Uma das complexidades mais absurdas do universo foi sintetizada por Einstein numa simples equação (E=mc²), o que seria assim tão místico e confuso que não poderia ser definido em palavras?

Como já dissemos, ao entrarmos neste campo de debate, sempre precisamos ser muito objetivos. Estamos lidando com um entreveiro de ideologias de diferentes épocas da humanidade, derrapar em alguns conceitos é um caminho sem volta.

O conceito de "numinoso", que o texto apresenta, por exemplo, foi cunhado pelo filósofo alemão Rudolf Otto (1869-1937) em 1917 (perceba-se que neste ano em específico a sua preocupação não era com a liberdade das massas ou algo do tipo) e significa algo como um feeling que está em todas as religiões do mundo. Este feeling, obviamente os marxistas sabem muito bem o que é na história, mas não sejamos grosseiros.

A grosseria reside em dizer que “a ciência não explica tudo”, e que pior “nem teria condições de fazê-lo”. É óbvio que há ainda muitos mistérios no universo, na química, na psicologia etc. Mas por que o autor não cita nenhum caso concreto? Hoje, diferentemente de para os egípcios antigos ou para os gregos - graças a um desenvolvimento milenar das ciências, um longo processo de conhecimento (que não é linear, inclusive) – muitos fatos para nós não são mais misteriosos: o formato do planeta, a imensidão do espaço-tempo, a luz do sol e um longo etc. É óbvio que, como diz o autor, a imaginação e a intuição atuam sobre o desconhecido (atuam sobre o conhecido também, como no exemplo das artes), e que a sua importância é fundamental para a construção do próprio conhecimento. Mas isto deve se ater a teorias sobre o desconhecido, não sobre o conhecido.

Mas como vemos, nosso autor, evidentemente, não se sente representado pela ciência, mas pelo conceito de numinoso de Otto! Tudo bem, vejamos o caso.
As teorias do filósofo foram muito admiradas por Aldous Huxley (autor bastante crítico ao socialismo de Admirável Mundo Novo), que por sua vez, caiu no oposto do que nosso autor parece querer escapar, isto é, a verdade una e inescapável. O próprio numinoso é entendido como um sentimento sagrado de quando o indivíduo se dá conta de que há algo maior do que ele. Neste sentido, não entendemos se a Geografia é uma ciência numinosa.


“O espírito no marxismo”:

Como já haviam entendido Marx e Engels lá na Ideologia Alemã, todos os homens são homens de um tempo. Esta parece ser a grande descoberta de nosso autor ao dizer que: “o marxismo está marcado pelo espírito do século XIX” e pelo “cientificismo positiva que ignora e menospreza o sentimento religioso como coisa inútil”. Não parece olhar, portanto de forma bastante contraditória, que a sua visão é a visão de um homem/mulher do século XXI, e não apenas para Marx, Engels ou quem quer que seja, mas para as próprias visões religiosas que busca entender. O seu olhar para as explicações cosmológicas, comparando-a com a própria ciência positiva, muito mais avançada que estas porque se trata de um estágio mais avançado da humanidade (para o deleite de nosso autor), estão demasiadamente datadas de todo o processo que a humanidade viveu desde o século XV. Por exemplo: ao usar o exemplo de Einstein sobre a imaginação, não entende que as visões de mundo (seja da mitologia grega, inca ou cristã) não se viam propriamente como imaginações, mas como algo próximo ao que hoje podemos entender como ciência (!).

A forma de consciência, ou melhor, a enganação idealista e abstrata que a religião é na compreensão marxista (“essa soma de forças de produção, capitais e formas sociais de intercâmbio, que cada indivíduo e cada geração encontram como algo dado, é o fundamento real [reale] daquilo que os filósofos representam como “substância” e “essência do homem”) não impede que os saltos políticos aconteçam. Afinal de contas, o lema da revolução bolchevique era “pão, paz e terra” e não “alma, deus e sexo”. Não há sexo sem pão, não há deus sem pão e acreditamos nosso autor também estar muito bem alimentado ao escrever tanta asneira.

É o que tentavam dizer, tanto Marx quanto Engels, ao escrever na Ideologia Alemã (p. 43) que: “Essas condições de vida já encontradas pelas diferentes gerações decidem, também, se as agitações revolucionárias que periodicamente se repetem na história serão fortes o bastante para subverter as bases de todo o existente, e se os elementos materiais de uma subversão total, que são sobretudo, de um lado, as forças produtivas existentes e, de outro, a formação de uma massa revolucionária que revolucione não apenas as condições particulares da sociedade até então existente, como também a própria “produção da vida” que ainda vigora – a “atividade total” na qual a sociedade se baseia –, se tais elementos não existem, então é bastante indiferente, para o desenvolvimento prático, se a ideia dessa subversão já foi proclamada uma centena de vezes – como o demonstra a história do comunismo.”

É um absurdo rebater estes argumentos pela inocência de suas conclusões, mas é preciso extirpar esta veia idealista de qualquer prática política disfarçada de “entender os pensamentos humanos mais profundos”.

Compartilhamos do mesmo anseio do Consciência Proletária do dogmatismo fajuto que, aí sim, em nossa visão, positivou o marxismo e o transformou em mera caricatura comtiana, expondo-o ao ridículo aos olhos dos trabalhadores do mundo. Mas isto não nos leva à direita, ao esotérico e nem ao místico. Discordamos profundamente da afirmação de que o marxismo é uma igreja e seus seguidores fiéis fanáticos dispostos a tudo pela libertação humana que sabem estar encarregados. Mas aí, evidentemente, podemos utilizar o velho provérbio chinês que dizia todos os fatos ter três versões: “a sua, a minha e a verdadeira”.

O marxismo hoje é um cânone, um dogma sem bíblia. Mas o Manifesto Comunista e o Capital não são nenhuma Bíblia ou nenhum Alcorão, não se fazem por meio de metáforas intransponíveis, são objetivos, práticos, estatísticos. Não por acaso, estes e outras inúmeras produções teóricas são escondidas por organizações ditas comunistas. É uma igreja sem bíblia. No entanto, reafirmamos, não se combate religiosidade com religiosidade assim como a cura da loucura não é mais loucura.

Quando J. Posadas escreveu sobre discos voadores e a matéria em outras galáxias (o movimento operário argentino deveria estar meio desinteressante), havia uma certa coesão em afirmar que sociedades alienígenas também poderiam ter traços imperialistas pela limitação de recursos no universo: “A ciência está sujeita a quem a paga. A ciência não é independente” (26 de junho de 1968). Nosso autor, infelizmente, sequer considera a ciência algo perene.

No entanto, considera a família nuclear monogâmica e o amor (uma invenção recente, como Sérgio Lessa muito bem pontua em Abaixo a Família Monogâmica!) estágios eternos e imutáveis ao questionar: “Mesmo em uma sociedade socialista, poderemos viver sem nenhum tipo de dor? Ou uma evolução humana que ocorra sem sofrimento? Adolescentes e adultos poderão não se sentir sozinhos no seu lento e pavoroso processo de individuação? Casais não mais sofrerão ao se separarem? Ou os relacionamentos serão perfeitos e sem nenhum tipo de crise? As famílias viverão numa eterna harmonia, sem conflitos?”

Como se pode ver, seus questionamentos não são corriqueiros, são leais em até certa medida. Mas um campo tão profundo quanto o marxista (que felizmente ou não, foi de ovnis até as metodologias do direito e da literatura) jamais pode ser acusado de ignorar elementos tão importantes como a psicologia, seja a individual ou a de massas. A própria Psicologia como a entendemos hoje só surge a partir do século XVI, e curiosamente, ela é uma ciência tão ou mais positivista quanto o que veremos no século XIX...

A alma como Sündenbock:

As tentativas de experiências socialistas, da URSS à Comuna de Paris ou aos chineses maoístas, não falharam porque negaram as necessidades da alma e do amor. Uma própria demografia do ateísmo demonstra que hoje vivemos um processo ao inverso do que o autor nos apresenta, o ateísmo cresce desde a década de 1990. E ainda que não hajam estudos mais sérios sobre isto, alguns dados são bastante interessantes. Isto porque em 2019, segundo pesquisa de Ryan Burge, o número de ateus nos Estados Unidos chegou a 23,1% (a porcentagem de católicos, por exemplo, era de 23% no mesmo ano). A mesma pesquisa, curiosamente, aponta que os mais religiosos e propensos a esta visão de mundo votam em candidatos como Donald Trump, que nosso querido blog caracteriza como um Mussolini 2.0. Os ateus, no entanto, estão mais propensos ao voto nos democratas. Evidentemente que esta pesquisa leva em consideração ateus como (espíritas, sem religião e ateus mesmo), mas o seu crescimento é inegável.

Não vivemos, portanto, um fenômeno de religiosidade, mas de afastamento a esta visão – o que pode gerar um conflito no polo oposto, por óbvio, tornando os religiosos mais arraigados em sua visão particular de mundo.

Nada disso significa que subestimamos o poder da religiosidade em ações políticas e distorções da realidade, nem da fé e nem da “espiritualidade”. Muito menos do individual. Também não concordamos com a conclusão apressada de Marx e Engels na Ideologia Alemã de que a religiosidade “já foi há muito tempo dissolvida pelas circunstâncias” (p. 45), mas sobretudo que, neste mesmo livro: “A dissolução real, prática, dessas fraseologias, o afastamento dessas representações da consciência dos homens, só será realizada, como já dissemos, por circunstâncias modificadas e não por deduções teóricas.” Isto significa, portanto, que o embate linguístico é bastante limitado. E tanto na Romênia, na Bulgária ou na Rússia do século XX, estas circunstâncias não foram completamente modificadas por uma série de fatores econômicos, geopolíticos e sociais. Porque enquanto a propriedade privada existir, seremos privados muito de entendermos o que somos, individual e coletivamente. Isto nos é negado cotidianamente, causando uma série de fraturas internas e externas.

No mais:

O socialismo não é um artigo de luxo para servir aos seres dotados de atitudes místicas para servir-lhes aos seus anseios espirituais, do contrário cairemos no mesmo buraco que J. Posadas. Devemos dizer ao blog Consciência Proletária, que se este estiver correto sobre o plano espiritual depois da morte, dar-lhe-emos um profundo aperto de mão reconhecendo que estávamos errados. Neste plano, no entanto, resta-nos seguir atacando suas posições infundadas.

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